sexta-feira, 24 de maio de 2024

Entre bisontes, losangos e asas abertas — sobre a capa de Nesgas de Terra Vermelha

Em julho de 2023, lançamos “Nesgas de Terra Vermelha”, uma seleta de poemas colhidos do livro "Red Earth – poems of New Mexico" [“Terra Vermelha – poemas do Novo México”], da poeta estadunidense Alice Corbin Henderson, originalmente publicado em 1920. Ficamos muito contentes com essa publicação, que vínhamos traduzindo e polindo há quase três anos.Ver esse projeto finalmente coexistindo conosco no mundo é algo inestimável. Contudo, hoje não venho falar sobre processos tradutórios ou algo do gênero: venho dividir com vocês um pouco dos bastidores do processo de criação da capa.

Tudo começa em 2020, com a descoberta do nome da Alice Corbin Henderson. Instigado, quase que imediatamente comecei a pesquisar sobre sua figura, sua obra e a traduzi-la. Enquanto este processo desenrolava-se, eu ia maquinando em segundo plano quais seriam os aspectos ideais para a capa desse projeto. Não me agradava a ideia de fazer algo que fosse fruto de uma leitura impressionista do livro; não queríamos algo óbvio, que revelasse improviso no processo. A ideia era fazer uma pesquisa sobre a trajetória da poeta, buscar quais percursos ela havia trilhado para chegar àqueles poemas, que temas e localidades habitavam o livro, para aí, a partir disso, experimentar imagens.

Comecei indo pelos rumos do Novo México, seguindo a pista dada pelo subtítulo. Muitos dos artistas de lá, disponíveis nessas minhas primeiras consultas, i.é., artistas já em domínio público, que teceram algum diálogo com a geografia abordada por Alice nesse livro, faziam paisagismos sem cor, retratos demasiadamente enfeitados, esboços de pássaros empalhados, etc. Então vi que o esposo de Alice, William Penhallow Henderson, era pintor. Pensei até em usar alguma de suas artes, mas findou que o estilo de pintura de William era um tanto tradicional, além de que não encontrei muitas pinturas suas que casassem com as temáticas do livro. Dessa busca geral, os trabalhos que mais me chamaram a atenção foram pinturas em que figuram alguns bisontes de olhos serenos, abraçados por uma paisagem erma, mas que passavam a impressão de tratarem-se de figurantes de um western, e os poemas de Alice não se debruçam sobre este tema. Neles, há mais uma sensação de aprendizado com os habitantes indígenas e falantes de língua espanhola, do que a sensação enervante e violenta de um bangue-bangue.



Após esse primeiro giro, decidi que seria mais interessante me debruçar na arte indígena da região, ao menos no que conseguia encontrar disponível on-line, visto que os poemas que mais achei interessantes foram as traduções de cantigas indígenas, como este:

Ouvindo O som de passos Na pradaria — Seriam homens ou deuses Que surgem do silêncio?

Ia pesquisando pelos povos citados nos versos. Pueblos de Tesuque, San Ildefonso, Bonito, etc. Dos achados, pensei em usar alguma das espetaculares pinturas de Julián Martínez ou de Awa Tsireh, mas, como na Munganga trabalhamos com limitação de cor em nossas publicações, tivemos que abandonar a ideia. Então pensei nos padrões das tapeçarias e cerâmicas. Algo menos figurativo, e mais subjetivo. Não queria algo completamente abstrato, e acho que ir pelos padrões impressos nos tapetes e nos artefatos cerâmicos foi uma ideia acertadíssima.



A partir da constituição deste repertório, comecei a rabiscar alguns padrões, experimentando com a constância do traço, a repetição das formas. Um estudo em lápis grafite me agradou, e o escaneei. Queria a partir dele começar a fazer algo mais sólido, já pensando em, com sorte, iniciar a capa final.

Acabou que esse estudo a lápis não ficou com a exatidão que eu esperava, por mais que eu tenha usado de marcações à régua. Mas nem tudo desse esboço se perdeu: recorri então ao Illustrator e ao Photoshop para fazer uma versão melhorada. Aproveitei o ensejo e fiz outros esboços, pensando em visualizar melhor as prováveis opções de capa — fiz uma de aspecto mais “pedregoso”, losangular; e outra mais sinuosa, brincando com a ideia de ventania. No final, depois de ponderar sobre as opções feitas até ali, optamos pela primeira ideia — mas agora numa versão mais refinada, feita digitalmente.




Uma curiosidade é que a inspiração original foi um fragmento de pintura de um vaso antiquíssimo do Pueblo Bonito, feito por volta do século XI. Quando a publicação é aberta – com a capa e contracapa ficando em 180º –, a impressão que temos é a de estarmos vendo asas abertas, prontas para o voo (ao menos foi o que tentei fazer, para além de ser o que também imagino/visualizo), um detalhe bacana no final das contas.


Acho que é isso. Espero que vocês curtam o texto falando um tanto do processo. Curto demais consumir esse tipo de conteúdo, em que os comentários são sobre algum trabalho concluído ou um work in progress.



— Victor H. Azevedo